quinta-feira, 18 de outubro de 2007

uma pequena história

Há muitos anos eu fui pobre, mesmo pobre. Passei Invernos sem “Kispos”, vestido apenas com casacos de malha feitos pela minha mãe, fizesse chuva ou fizesse frio, às vezes muito frio. Fui motivo de chacota no liceu, pela crueldade que só os miúdos conseguem ter, e alvo de enxovalhantes inquirições em público pelos professores, os mais misericordiosos e pios. Aconteceu isto depois da morte do meu pai, tinha eu uns 12 anos e era o meu irmão militar, por sinal com problemas - suspensão e até detenção em quartel - por estar envolvido politicamente. Para além da falta do “Kispo”, faltavam-me outras coisas, acima de tudo uma bicicleta. Mas eu corria que me fartava. No Liceu Pedro Nunes, escola lisboeta de ricos, ganhava corridas sobre corridas de 60 metros (o tamanho da pista do liceu) e na minha rua só o Zé Manel da “peixeira” conseguia competir comigo. Percebi mais tarde que miúdo sem bicicleta corre mais depressa. Um dia juntaram-se no jardim da Estrela uns 10 miúdos da minha zona com bicicletas, alguns amigos, outros nada amigos, para fazerem corridas em redor do maior espaço relvado, uma extraordinária pista de cimento - que ainda hoje existe. Eu não seria o único sem bicicleta, mas doía-me tanto como se fosse.Tiveram lugar as eliminatórias e apurou-se um vencedor, o Paulo Jorge. Foi o meu momento de glória. Desafiei-o para uma corrida, eu e as minhas pernas e ele e a sua fantástica bicicleta de roda 24. Creio que se riu. Quase todos se riram de mim. A pista teria uns 200 metros. Era uma só volta, partindo-se lado a lado. Ganhei. Corri que nem um louco, mas feliz e determinado, porque sabia que tinha de ganhar e assim, quem sabe, vingar toda a dor de ter sempre menos que todos os outros. Terminada a volta, viro-me para trás para celebrar e contemplar a cara daqueles meus amigos mais ricos. O Paulo Jorge não conseguiu suportar a minha vitória e atropelou-me com violência. Caímos os dois e penso que parti a cabeça. Não recordo muitas outras vitórias com aquele sabor, passados estes 30 anos. Mais do que já antes sucedia, nunca depois me deixaram conduzir as bicicletas deles e o Paulo Jorge deixou de me falar, pelos menos umas boas semanas. Mais tarde as coisas mudaram e também eu passei a ter um “Kispo”. Já a bicicleta, só aos 35 anos comprei uma.

7 comentários:

zefm disse...

Que me perdoem todos mas, por um momento, vou falar a sério. Este post do "nosso" Vítor Machado é um dos mais tocantes e emocionantes que tenho lido. E está escrito duma forma brilhante e extremamente cinematográfica. Enquanto lia eu parecia estar a viver tudo aquilo, a vibrar para que o Vítor ganhasse aquela corrida, que valia uma Vida. Este retrato mostra-nos a imensa grandeza do Vítor Machado e é-nos contado pelo nosso amigo duma maneira única. Agora, e por fim, só me resta correr a mostrar o post a mais 3 admiradores que o VRM tem, há muito, em minha casa. Nota: Ou muito me engano ou esta "estória" poderia dar uma "grande" curta metragem.
Um abraço.

Luís Miguel Barros disse...

A Vida é feita de muitas Grandes pequenas histórias como esta. Poucos serão os que as sabem contar desta forma fantástica, que nos emociona e enche a alma. Como disse o ZEFM, lemos e estamos a viver tudo aquilo. Ouvimos a algazarra dos miúdos, as campainhas das bicicletas e o som das passadas do Vítor naquela pista do jardim da Estrela. Ansiamos pela sua vitória, festejamo-la e ficamos com vontade de dar um estalo no Paulo Jorge. Ninguém tem o direito de tratar assim o “nosso” miúdo de 12 anos. Parabéns pela vitória. Obrigado por esta fantástica, colorida e comovente sequência de imagens escritas. Não é sempre que temos o privilégio de ver um amigo a ganhar uma corrida. Um grande abraço.

Beta disse...

shuif shuif! devem ter sido estes e outros episódios da tua vida que te tornaram no ser humano fantástico que és hoje!
obrigada por teres partilhado connosco!
Depois disto...vou postar sobre o quê???????????????

Bela disse...

Querido Vitor, não consegui impedir que os meus olhos se enchessem de lágrimas ao ler a tua "pequena, grande história!" É com enorme orgulho que me considero tua amiga e desejei ardentemente ser tua amiga naquela altura e não deixar ninguém rir-se de ti.
Decidi contar-te a minha experiência, nem de perto nem de longe tão dramática como a tua, terá sido eventualmente para a minha mãe que enquanto criança partilhava uma casa minúscula com mais 10 irmãos, a dividir parcas refeições. Na minha história eu tive um “Kispo”, bastante feio por sinal, mas tive. Bicicleta é que também nunca tive, nem triciclo, nem nada que se pareça.
Pedimo-la à minha mãe, eu e a minha irmã, milhões de vezes, ela respondia invariavelmente que quando ganhasse o totobola a compraria e nós, ingenuamente, achávamos que seria para a semana e na semana seguinte voltavamos a pedir e ela voltava a responder a mesma coisa. E assim foi até já ter idade para perceber que não tinha bicicleta tão simplesmente porque não havia possibilidades. Entretanto vem-me à memória algumas refeições, não foram poucas, em que a minha mãe, sempre ela coitada, servia-nos a comida e esperava que acabássemos de comer para então começar ela. Tinha medo que a comida não chegasse e que ficássemos com fome. Eu nunca tive fome, mas tenho a certeza que a minha mãe nem sempre comeu tudo o que queria. Também me lembro da crueldade com que a tratei, quando já adolescente, fazia birras enormes porque queria umas calças de marca e lhe dizia que ela é que não as comprava porque não queria. E ela coitada, lá fez das tripas coração para me comprar as ditas calças. Hoje apercebo-me que o valor das calças seria provavelmente o budget para muitas refeições que ela deixou de comer.
Por essa e muitas outras razões, adoro a minha mãe!
Espero que ao partilhar a minha história, ou a da minha mãe, sirva para te dizer que vivi as tuas experiências como se fosses tu. Revoltei-me contra os filhos da mãe dos miúdos que te fizeram tanto mal.
Espero que o teu passado sirva para teres muito orgulho na volta que conseguiste dar à tua vida, tirar o teu curso, alcançares uma cultura geral muito acima da média. Aposto que venceste e vencerás os Paulos Jorges muitas vezes ao longo da tua vida.
Parabéns!!

Antonio disse...

Pois as vidas são de facto muito diferentes e a minha foi cheia de muitas coisas materiais e imateriais, tive Kispo, bicicleta, ilusões e desilusões. Mas uma coisa nunca tive, uma vitória como esta.

Parabens Vitor e um grande abraço.

Clara disse...

Uma pequena grande história querias tu certamente dizer, pois é isso que ela é! Um valente miúdo era o que tu eras! E que grande vitória a tua, amigo!

Master of Menir disse...

Bom de facto a tua história emociona pela grandeza, quem te conhece e te admira como eu e todos os anteriores "postadores" sabêmo-lo bem, que gozo te terá dado essa vitória; crê-me que de facto vivêmo-la. Pena é que nesse já longinquo tempo não existia o skate, terias tido a possibilidade de, no final, pegar no dito e dar-lhe com ele nos cornos desse Paulo Jorge !. Fica bem e continua.